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Retratos Fantasmas: o resgate da memória dos cinemas de rua do Recife por KMF

O filme está em cartaz nos cinemas (em Teresina, no Cinemas Teresina e na Cinepólis Rio Poty)

Kleber Mendonça Filho é um dos diretores mais importantes e conhecidos do cinema brasileiro atual. “O Som ao Redor”, “Aquarius” e Bacurau” são excelentes filmes que consagraram a carreira do diretor pernambucano. Sua filmografia é marcada por fortes críticas políticas e sociais, tendo em “O Som ao Redor” e “Aquarius” uma relação direta com a cidade do Recife.

Particularmente, considero “O Som ao Redor” o segundo melhor filme de KMF (seria o primeiro, mas “Retratos Fantasmas” conquistou meu coração), entretanto, é inegável o poder e a notoriedade de “Bacurau”. Foi um verdadeiro sucesso, levando diversos brasileiros ao cinema e sendo bastante premiado (como o Prêmio do Juri de Cannes), que em meio há uma forte crise política, suas críticas o tornaram mais relevante.

Foto: Divulgação/Vitrine Filmes
Retratos Fantasmas: o resgate da memória dos cinemas de rua do Recife por KMF

Os fantasmas do cinema de KMF

“Retratos Fantasmas” inicia de forma bastante pessoal. Somos inseridos em uma parte da história do próprio diretor, com antigos vídeos caseiros. Neste momento, KMF faz um resgate histórico da sua própria vida, sua relação com sua mãe, sua casa, sendo o ponta pé para mostrar sua conexão com o Recife, a cidade onde nasceu e morou boa parte de sua vida.

Ao contar que sua mãe, Joselice Jucá, foi uma historiadora e pesquisadora, toda a construção do filme é justificada, principalmente ao mostrar um vídeo onde sua mãe fala da importância da história oral e seu resgate. Apaixonado por cinema, o diretor usa de imagens antigas e novas para contar uma história ao espectador, a sua e parte da história do Recife.

Esse primeiro momento é a imersão em “Kleber Mendonça Filho”. Como já dito, somos inseridos em sua vida e nesses desdobramentos, o diretor faz referência aos seus próprios filmes, quase como explicando determinadas escolhas em seus dois longas que retratam Recife, “O Som ao Redor” e “Aquarius”. Esses dois filmes em específico trazem a cidade como plano de fundo a questões urbanísticas e sociais da cidade, um recorte sobre a relação de um morador e o espaço no qual sua casa está inserida, seja em um contexto de apego emocional, mudanças indesejadas ou busca por segurança.

Durante todo esse primeiro momento, KMF relaciona diretamente (e indiretamente) sua vida, história e morada com seus primeiros filmes, desde os seus primeiros curtas-metragens a seus dois primeiros longas ficcionais. Como alguém que já tinha assistido “O Som ao Redor” e “Aquarius”, é inevitável não ficar boquiaberto com a montagem de “Retratos Fantasmas” ao ‘sobrepor’ cenas em um mesmo ambiente, e assim, compreendermos as escolhas do diretor nos longas anteriores.

Ao mesmo tempo que KMF nos apresenta sua vida mais íntima, vamos conhecendo e acompanhando mudanças no Recife, mudanças na vizinhança do diretor. Desde a morte do cachorro do vizinho que latia à casa que foi se deteriorando como tempo ou das casas que se mantiveram com grades ao invés de muros permitindo uma permeabilidade visual.

Com “Retratos Fantasmas”, vamos observando como o tempo vai alterando os lugares, as casas, as ruas, os bairros e a cidade, sejam essas mudanças boas ou não.

A cidade no cinema e o cinema na cidade

Os cinemas de rua foram os primeiros templos destinados exclusivamente para a exibição de filmes, sendo locais inseridos diretamente no espaço urbano, é aquele cinema onde o exibidor não faz parte de multinacionais ou dos shoppings centers.

Assistir a um filme que traz, também, a história dos cinemas de rua do Recife foi emocionante. Sou formada em Arquitetura e Urbanismo, desde que comecei meus estudos para o TCC (há um ano), os cinemas de rua vem sendo meu objeto de pesquisa, desde a sua história no mundo até seus impactos urbanos. Infelizmente, Teresina não tem um cinema de rua desde o fim das atividades do abandonado Cine Rex em 2005.

A pesquisadora de Cinema no espaço geográfico e arquitetônico, Maria Helena Costa, diz que “o próprio cinema, desde a exibição do primeiro filme, se desenvolveu dentro do espaço urbano (da cidade) engajando uma audiência também urbana a um espaço (lugar) de recepção”. Dentro de “Retratos Fantasmas” essa afirmativa se torna maior, uma vez que temos um filme que traz a história dos cinemas de rua de um determinado espaço urbano para essa audiência também urbana que estará inserida no espaço de recepção, neste caso a sala de cinema.

Observando essas mudanças dos cinemas de rua no Recife apresentadas no filme, é impossível não traçar um paralelo com a história dos cinemas de rua de Teresina e do Brasil. O centro da capital do Piauí já teve alguns cinemas de rua, mas que, infelizmente, com a descentralização comercial da região e a chegada dos multiplex (cinemas com 2 ou mais salas, um adendo: cinemas de rua podem ser multiplex) aos shoppings, resultaram no encerramento de suas atividades, assim como KMF mostra em seu filme.

No longa em questão, o diretor faz um passeio por esses cinemas, contando um pouco das suas histórias, sempre acompanhas de muitos arquivos visuais, sejam antigos vídeos ou fotos. Isso me fez pensar na importância da preservação audiovisual, do intenso trabalho de restauradores e arquivistas no Brasil, e ver nomes importantes nos créditos foi lindo, como o da presidente da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual, Débora Butruce, e do Cinelimite (organização sem fins lucrativos que se dedica a exibir, digitalizar e distribuir obras do cinema brasileiro).

Também foi interessante acompanhar a menção e valorização de determinadas nomes do cinema do Pernambuco, e consequentemente um pouco da história do cinema brasileiro, como o de Katia Messel e Cláudio Assis (a quem tive a honra e prazer de já entrevistar). E ainda acompanhar um recorte sobre a febre dos filmes de King Kong e Sônia Braga no cinema, que com “Dona Flor e Seus Dois Maridos” e “A Dama do Lotação” competiu e desbancou alguns dos blockbusters americanos famosos.

O cinema é uma marca da modernização das cidades, e observar essa associação dentro do desenvolvimento urbano do centro do Recife em “Retratos Fantasmas” é fenomenal. Cinema é cultura urbana, ele está inserido nas cidades, e o cinema de rua é quem permite esse contato mais direto. O cinema com sua arquitetura (muitas vezes o Art Deco), seus letreiros que chamam a atenção e convidam os espectadores. Realmente, “cinema é a maior diversão” (tem que ver ao filme para entender).

Foto: Divulgação/Vitrine Filmes

Todo cinema de rua tem sua história, ainda que essas histórias se cruzem e aparentemente se repitam por uma tendência e questão sócio cultural do Brasil, pela história de cada edifício, suas ruínas e suas reinvenções e suas novas histórias. Cinemas que (por Recife e pelo Brasil) deixaram de ser cinemas e viraram, por muitas vezes, Igrejas evangélicas.

Impossível não se emocionar com os últimos dias do Art Palácio, a emoção do projecionista e suas tantas histórias para contar (seja falando ou projetando). Me fez lembrar do documentário “O Homem da Cabine”, de Cristiano Burlan, que mostra o cotidiano de um projecionista. Ver aquelas salas de cinemas vazias, em seus últimos dias, num ar de melancolia e tristeza, com tantas histórias contadas, também me fez lembrar de um dos melhores filmes do mundo, “Goodbye Dragon Inn”, de Tsai Ming-Liang.

O que resta do cinema (de rua)?

Em 2011, um dos maiores teóricos do cinema, Jacques Aumont, defendeu a sala de cinema no artigo “Que reste-t-il du cinéma?” (O Que Resta do Cinema?). Jacques apontou que a sala escura é o espaço coletivo de total dedicação ao cinema, um local onde se estabelece total passividade do espectador, no qual, esse dispositivo nos convida a experimentar uma unidade indivisível, a obra fílmica. O teórico levantou essa discussão por conta do fenômeno dos streamings, mas aproveito esse ponto de reflexão também para como consumimos o cinema, as idas ao cinema (no caso de Teresina, apenas em shoppings centers). Como consumimos os filmes? Como saímos após uma sessão no cinema? O que resta deles em nós?

“Retratos Fantasmas” é daqueles filmes que impactam, principalmente os que amam o cinema e tem uma relação intensa com as salas de cinema. Aquela sala escura, onde estamos entregues totalmente aquilo que vemos, onde somos passivos e também somos agentes, já que sairemos de lá diferente do que entramos, e isso mudará nossas vidas.

O filme está em cartaz nos cinemas (em Teresina, no Cinemas Teresina e na Cinepólis Rio Poty).

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