Conecta Piauí

Notícias

Colunas e Blogs

Blogs dos Municípios

Outros Canais

ÍntimaMente

Reflexões sobre saúde mental, afetos e os labirintos das relações humanas

Corrida e a Cultura da Produtividade: quando o prazer vira performance

Quando a gente olha para o modo como vivemos hoje, dá pra entender essa mudança

A corrida sempre foi um símbolo de liberdade. Aquela sensação boa de colocar o tênis, sair de casa e sentir o corpo em movimento. Correr já foi sinônimo de tempo pra si, de pausa mental, de respiro. Mas, nos últimos anos, o que era pra ser simples e prazeroso virou, para muita gente, mais uma fonte de cobrança e comparação.

Vivemos numa época em que tudo precisa ter um propósito “produtivo”. Até o lazer precisa justificar sua existência: “faço corrida porque ajuda na saúde mental”, “porque melhora meu condicionamento”, “porque me faz render mais no trabalho”. Parece que gostar por gostar já não é suficiente.

Foto: Criado no Gemini/ Conecta PiauíCorrida e a Cultura da Produtividade: quando o prazer vira performance
Corrida e a Cultura da Produtividade: quando o prazer vira performance

A corrida, que antes era um escape da rotina, se transformou num campo de performance — cheio de métricas, aplicativos, metas e até status social. O tênis certo, o smartwatch da moda, o relógio que mede cada passo, o aplicativo que compara seu pace com o de outras pessoas. O simples ato de correr virou quase um projeto de eficiência.

A transformação do hobby em meta

Quando a gente olha para o modo como vivemos hoje, dá pra entender essa mudança. A cultura da produtividade nos ensina, desde cedo, que valor tem quem entrega resultados. A lógica do desempenho escorre para tudo: pro trabalho, pros relacionamentos, pro corpo — e, claro, pros hobbies.

Só que o problema é que essa busca por ser “melhor” em tudo rouba justamente o espaço do prazer. O que era uma atividade leve começa a gerar ansiedade:

  • Será que estou evoluindo?
  • Será que estou mais lento que o fulano?
  • Será que esse tênis é o ideal?

De repente, o que era um momento de liberdade passa a ter um roteiro rígido: ritmo certo, treino certo, tempo certo.
E a sensação de bem-estar, que deveria vir naturalmente, é substituída por cobrança.

O paradoxo da corrida produtiva

É curioso: a corrida, que muitas vezes nasce como um gesto de autocuidado, acaba se tornando o oposto — mais uma fonte de estresse. A promessa é de leveza, mas o resultado é mais uma meta a ser cumprida.

A corrida, que antes era uma pausa no dia, vira mais uma tarefa da lista. A indústria do fitness e das redes sociais reforça esse movimento. Basta abrir o Instagram para ver uma enxurrada de posts sobre tempos, quilometragens, desafios e equipamentos. Claro, não há nada de errado em se orgulhar de uma conquista.

O problema é quando a comparação vira o centro da experiência — quando o “olha o que eu consegui” vira “olha o que eu ainda não consegui”. Essa pressão silenciosa transforma o lazer em performance, e o descanso em competição.

O papel das redes e da comparação constante

As redes sociais criaram um palco permanente onde tudo pode ser exibido — inclusive nossos hobbies.
E quando tudo é público, o prazer íntimo tende a se diluir. A corrida deixa de ser sobre sentir o vento no rosto e passa a ser sobre o registro no aplicativo, o post no feed, a aprovação dos outros.

E é aí que mora a armadilha: quando o prazer depende do reconhecimento externo, ele deixa de ser nosso.
A satisfação não vem mais do ato em si, mas da validação. A corrida, que poderia ser sobre conexão com o corpo, se torna sobre performance para o olhar do outro.

As consequências de correr para “produzir”

Quando o corpo é tratado como uma máquina de resultados, ele responde como tal: com fadiga, ansiedade, lesões.
É cada vez mais comum ver pessoas vivendo o chamado overtraining, ou esgotamento motivacional — quando a pessoa treina tanto, cobra tanto de si, que perde o gosto pelo próprio treino.

Fisicamente, o corpo dá sinais que são ignorados em nome da planilha. Psicologicamente, o hobby se mistura com a obrigação. Socialmente, surgem comparações, hierarquias e até sentimentos de inferioridade. Tudo isso distancia o corredor do motivo original que o fez começar: o prazer simples de se mover.

Resgatar a leveza: correr sem meta, sem relógio, sem culpa!

Mas há um caminho possível de volta. Ele começa quando a gente se permite desacelerar — literalmente e simbolicamente. Correr sem meta pode parecer estranho no começo, principalmente pra quem está acostumado a medir tudo. Mas, aos poucos, o corpo reaprende a ditar o ritmo.

O vento volta a ser mais importante que o tempo. O som da respiração volta a importar mais que o número no relógio.
Correr sem aplicativo, sem comparar, sem postar, pode ser uma forma de reencontro.
Não precisa ser todo dia — basta lembrar que essa opção existe.
Que o movimento pode ser só movimento, sem função.

O valor do “correr por correr”

Correr sem meta não é perda de tempo. É reconexão.
É lembrar que o corpo não serve só pra render — ele serve pra sentir.
A corrida, quando vivida de forma leve, é um espaço de presença.
É o momento em que o mundo desacelera um pouco, e a mente acompanha o ritmo do corpo.
Talvez o grande desafio de hoje seja justamente esse:
Reaprender a fazer coisas só porque gostamos.
Não porque ajuda no desempenho.
Um convite à desaceleração
Resgatar o prazer da corrida é, de certo modo, um ato de resistência cultural.
Num mundo que mede tudo, escolher não medir é quase um gesto revolucionário.

Quando a gente decide correr só pra sentir, sem pensar em resultado, está também escolhendo um modo mais gentil de se relacionar com o corpo — e com a vida.

A corrida pode continuar sendo um treino, claro. Mas ela também pode ser pausa. Pode ser respiro. Pode ser só um tempo seu, sem testemunhas, sem metas, sem cobranças.

Porque, no fim das contas, o corpo não precisa sempre performar. Às vezes, ele só precisa se mover.
E isso, por si só, já é o bastante.

Talvez o desafio hoje seja reaprender a fazer as coisas só porque gostamos — não porque somos bons, não porque alguém vai ver, não porque melhora o currículo. 

Só porque sim. 

Porque é leve. 

Porque é nosso!

Comente