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Cultura, resistência e a polêmica da Lei Rouanet

Mas, afinal, o que é a Rouanet e como ela realmente funciona?
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No último fim de semana, manifestações da esquerda reuniram artistas em defesa da democracia e contra os avanços autoritários. Como sempre acontece, não demorou para que a extrema-direita ressuscitasse o velho espantalho: os artistas seriam “sugadores” da Lei Rouanet. Uma acusação repetida tantas vezes que quase se confunde com verdade. Mas, afinal, o que é a Rouanet e como ela realmente funciona?

Foto: Mídia NinjaManifestação da esquerda
Manifestação da esquerda

A lei que hoje ocupa o centro da polêmica nasceu em 1991, no governo Fernando Collor, sob a batuta de um ministro liberal, Sérgio Paulo Rouanet. E aqui vai a primeira ironia: a Rouanet não tem nada de socialista, estatizante ou “mamata estatal”. Ela é, na verdade, fruto do pensamento neoliberal: retira do Estado a responsabilidade direta de financiar a cultura e transfere ao mercado a escolha de onde investir.

Funciona assim: empresas podem destinar até 4% do imposto de renda devido para projetos culturais previamente aprovados pelo Ministério da Cultura. Pessoas físicas também podem participar, com até 6%. Na prática, em vez de o imposto ir direto para os cofres públicos, ele se converte em patrocínio cultural. O papel do governo federal é apenas fiscalizar se os recursos estão sendo corretamente aplicados, tanto por quem recebe, quanto por quem patrocina.

Esse desenho cria um paradoxo: a lei democratiza a possibilidade de investir em cultura, mas, ao mesmo tempo, concentra recursos em grandes nomes e nos grandes centros urbanos. Bancos, multinacionais e grandes empresas tendem a associar suas marcas a projetos que garantam visibilidade e retorno de imagem. O resultado é que novos artistas, companhias pequenas e iniciativas periféricas muitas vezes ficam à margem desse sistema.

Mas entre reconhecer as limitações do modelo e tachá-lo de “mamata” existe um abismo. A Lei Rouanet não enriquece artistas às custas do povo. Pelo contrário, ela movimenta uma das engrenagens mais vitais da sociedade: a cultura. E cultura é mais do que entretenimento — é pensamento crítico, memória, identidade, resistência.

Os números falam por si. Estudos mostram que a cada real investido via Rouanet, R$ 1,60 retornam à economia em forma de serviços, emprego e renda. O efeito multiplicador é inegável. Festivais geram turismo. Peças de teatro criam cadeias de trabalho que vão do iluminador ao vendedor de pipoca. Shows movimentam bares, restaurantes e hotéis. A cultura, longe de ser um peso, é motor econômico.

A crítica consistente que se deve fazer à lei é outra: sua incapacidade de alcançar de maneira justa todos os setores culturais, em especial os invisibilizados. Mas essa é uma falha de estrutura, não uma fraude dos artistas.

O ataque sistemático à Rouanet é parte de um projeto político maior. A extrema-direita sabe que artistas incomodam. Eles pensam, questionam, expõem contradições. A história mostra que regimes autoritários sempre tiveram a cultura como inimiga. Do nazismo ao fascismo, da censura às ditaduras latino-americanas, a arte sempre foi perigosa para quem deseja impor silêncio.

No Brasil, os artistas continuam sendo alvo de campanhas de difamação que buscam minar sua legitimidade. Mas a verdade é que, sem a cultura, ficamos órfãos de memória, identidade e futuro. A Rouanet pode ser imperfeita — como são todas as construções humanas. Mas, mais que uma lei, ela é um pacto de civilização: a aposta de que investir em arte é investir em gente.

E gente, no fim das contas, é o que faz um país ser mais que território. É o que faz dele uma nação.

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