190 anos da Alepi — A casa onde ecoa a voz do povo piauiense
Uma história que segue sendo escrita: lei por lei, voz por voz, vida por vida
No relógio da história, cento e noventa anos são um sopro. Mas, quando o tempo corre dentro da Assembleia Legislativa do Piauí, ele ganha corpo, pulsa, respira, reverbera. É nessa casa — plural, de portas abertas, com paredes que ouviram o eco do Império, da República e da redemocratização — que o cotidiano dos piauienses se traduz em lei.
E é no dia a dia simples de gente como Cynara Leite, enfermeira de 41 anos, que o trabalho da Alepi se faz sentir. Todos os dias, ela acorda cedo em Demerval Lobão, prepara o café, leva o filho à escola, pega a estrada bem asfaltada e sinalizada. No posto, escolhe o combustível mais em conta. No trabalho, respira um ar limpo — livre do cigarro. E, ao fim do dia, confere no supermercado os preços à vista, claros, sem surpresas no caixa.
Cynara talvez não saiba, mas cada um desses gestos — da segurança nas estradas à transparência nos preços — tem algo em comum: nasceu de uma lei. São frutos diretos de quase dois séculos de debates, de vozes que se levantaram naquele plenário para transformar o desejo coletivo em regra de convivência.
“Eu faço tudo no automático. Acho que todo mundo, né?”, diz ela, sorrindo. Mal sabe que sua rotina é o retrato vivo da missão da Assembleia: fazer da vida comum um ato político.
O cientista político Dário Castro explica. “O Poder Legislativo é o grande organizador da sociedade. É nele que as ideias ganham forma, que os direitos se equilibram, que os vulneráveis encontram proteção. A Alepi, nesses 190 anos, é a caixa de ressonância da alma piauiense”, pontuou.
O fio da história
Tudo começou em 4 de maio de 1835, na antiga capital, Oeiras, quando os primeiros 20 deputados — entre eles o médico José Luiz da Silva, o primeiro do Piauí — instalaram a Assembleia Legislativa Provincial. Ali nascia a semente da democracia representativa em terras piauienses.
Dr. José Luiz não apenas cuidou de corpos, mas ajudou a curar desigualdades. Seu legado atravessou gerações. Mais de dois séculos depois, descendentes seus ainda ocupam cargos públicos — muitos, no mesmo plenário que o ancestral ajudou a fundar.
Entre esses herdeiros do espírito público estão Luciano Nunes Santos e Luciano Nunes Filho, ambos ex-deputados estaduais; e também Tibério Nunes e Wilson Martins, que além de terem sentado em uma das cadeiras da Alepi, também, chegaram ao cargo de governador do Estado. Uma linhagem que parece ter a política correndo nas veias — vocação e serviço como herança.
O também médico Deolindo Filho, descendente da mesma família, recorda com emoção. “Meu primo Marcos Santana foi prefeito de Oeiras em 2004, e, naquele ano, três descendentes do doutor José Luiz disputaram a prefeitura. Todos da mesma linhagem. É impressionante como a vocação pelo serviço público se perpetua desde aquele primeiro médico que virou deputado”, lembrou.
Desde então, mais de 600 parlamentares ocuparam as cadeiras da Alepi. Homens e mulheres que ajudaram a desenhar o mapa político, social e moral do Piauí.
O tempo e suas marcas
A Alepi não ficou parada. Migrou de Oeiras para Teresina em 1852, quando a nova capital brotou do traço e da visão de futuro de José Antônio Saraiva. No século XX, encontrou morada definitiva no Palácio Petrônio Portella, inaugurado em 2 de fevereiro de 1985 — símbolo de modernidade, arquitetura e democracia.
Ali, no coração da capital, pulsa o poder que legisla para todos. O prédio, que completa 40 anos em 2025, é mais que sede — é testemunha.
Tradições, famílias e continuidade
A história da Alepi também se escreve com sobrenomes que atravessam gerações. Nenhum talvez resuma melhor essa longevidade que o de Wilson Brandão. São 60 anos de presença ininterrupta de pai e filho no Parlamento estadual.
Atualmente em seu nono mandato consecutivo, o mais longevo da atualidade, o deputado se prepara para encerrar um ciclo. “Foram 36 anos de dedicação à Casa e à população piauiense. Decido não disputar a reeleição por motivos de saúde, mas saio com a sensação de dever cumprido. A Alepi foi minha segunda casa — e continuará sendo o coração político do nosso estado,” disse, emocionado.
A força do nome Wilson Brandão se estende também à Escola do Legislativo, que leva seu nome. Inaugurada em 2008, a escola já realizou mais de 400 cursos, entre extensão, graduação, pós-graduação e oficinas, beneficiando quase quatro mil pessoas.
Este ano, a instituição celebrou um marco ao firmar convênio com a Academia Piauiense de Letras (APL), para criação de um programa exclusivo na TV Assembleia, na Rádio ALEPI e na própria Escola, com foco na divulgação da história e do vasto acervo intelectual da Academia.
O deputado Wilson Brandão, também membro da APL, destacou. “A Escola do Legislativo tem aproximado o Parlamento da sociedade. Este convênio vai fazer com que a produção intelectual piauiense alcance ainda mais pessoas”, acrescentou.
O legado dos que vieram antes
Outro nome incontornável é o do atual vice-governador Themístocles Filho, que dedicou dez mandatos à Alepi e a presidiu por 17 anos ininterruptos — o mais longo comando do gênero no país. “Qualquer cidadão nessa vida tem história, ninguém apaga o tempo. A gente sempre leva os ensinamentos para o futuro", disse Themistocles lembrando que foram anos de trabalho, diálogo e modernização na Casa.
Durante sua gestão, a Alepi viveu avanços estruturais e de transparência, como a criação da TV e Rádio Assembleia, há 18 anos. Por meio de uma Fundação, ambas receberam o nome do ex-deputado Humberto Reis da Silveira, outro personagem lendário: 55 anos de vida parlamentar, 13 mandatos entre 1947 e 2002. Um recorde que seu neto, o empresário Rômulo Maia, tenta comprovar junto ao Guinness Book.
“Meu avô contava que, quando foi eleito pelo PSD, em 1947, tinha apenas o 2º ano científico. Para tomar posse, enfrentou a cavalo uma viagem de 18 dias, de Jaicós até Teresina”, relembra Rômulo, acrescentando que o feito chegou a ser citado no livro dos recordes, com ele ainda em vida.
A nova geração
Hoje, à frente do Legislativo, está o deputado Severo Eulálio, herdeiro de uma tradição de mais de seis décadas de sua família na Casa. Neto de Severo Maria Eulálio, primo de Oscar Eulálio, filho de Kleber Eulálio, ele simboliza uma Alepi que se renova sem perder suas raízes.
“Não pensava em ser político quando criança”, conta. “Mas, com o tempo, entendi a importância de servir à sociedade. Assumi essa missão com amor e responsabilidade”, completou.
Presidir a Alepi em seu 190º aniversário é, para Severo, um gesto simbólico. “Sinto-me honrado em representar uma instituição que acompanhou todas as transformações do Piauí e do Brasil. Nosso desafio é aproximar ainda mais o Legislativo das pessoas — levar as sessões às cidades, modernizar, tornar a política mais próxima e transparente”, afirmou.
É o espírito do projeto Avança Alepi, que leva o Parlamento ao interior, em sessões itinerantes por todo o Estado.
Uma Casa viva
Desde a promulgação da Constituição Estadual de 1989, a Alepi se firmou como Casa da Cidadania, onde tudo passa, tudo ecoa. Projetos nascem, se debatem, se transformam. É o palco da democracia em movimento.
“Não existe democracia sem Parlamento”, reforça o cientista político Dário Castro. “A Assembleia é o elo entre o cidadão e o Estado — uma casa que ouve, debate, decide, mas sobretudo, representa”, pontuou.
190 anos depois
Da primeira reunião em Oeiras ao moderno plenário do Palácio Petrônio Portella, a Assembleia Legislativa do Piauí atravessou impérios, repúblicas, ditaduras e redemocratizações. É o espaço onde as vozes se cruzam, onde o Piauí se pensa e se reinventa.
Afinal, “tudo passa por aqui” — como ecoa nos corredores da Casa.
E quando Cynara Leite, sem saber, vive seu dia entre estradas, escolas e supermercados, ela é, sem perceber, uma filha legítima dessa história de 190 anos.
Uma história que segue sendo escrita — lei por lei, voz por voz, vida por vida.